domingo, janeiro 14, 2007

Patagonia 1000 km BTT: o desfecho


Olá Pedro,

Finalmente arranjo tempo para o relato final da nossa aventura na Patagónia, depois de termos regressado à pátria sãos e salvos!...

De Punta Arenas, no dia 31 de Dezembro, entrámos de bicicleta no ferry para atravessar o Estreito de Magalhães até Porvenir, já na Terra do Fogo. Saímos a pedalar e travámos conhecimento com as paisagens que iriam acompanhar-nos nos próximos dias: estepe a perder de vista, de vegetação rasteira verde-acastanhada, que cresce sempre na mesma direcção devido ao forte vento patagónico que sopra sem descanso... felizmente, ainda a nosso favor. Assim, rolámos ligeiros, contornando a "Bahia Inutil", nome curioso do golfo que todo o dia nos trouxe os ares mesclados de Atlântico e Pacífico, embora o cenário tranquilo parecesse mediterrânico - não fosse a baixa temperatura, e os picos gelados que se alinhavam sem cessar do outro lado do estreito, a desfazerem essa ilusão...

Ao fim de 100 Kms, o Jaime esperava-nos para nos conduzir a Cameron, aldeia perdida de "ovejeros" onde passaríamos a última noite do ano, sem dúvida inesquecível: dormimos numa antiga casa de madeira, nos aposentos dos tosquiadores de ovelhas (conhecem o cheiro da lã tosquiada? não queiram!...), não sem antes nos deliciarmos com uma lauta ceia do tradicional "cordeiro patagónico", assado por quem sabe e degustado na mesa onde comem os "ovejeros", enquanto um deles nos falava, nas suas palavras de homem simples e de trabalho, sobre como castravam os cordeiros com os dentes e outros usos...

No primeiro dia do ano, partimos estepe adentro, afastando-nos finalmente do mar para enfrentar sucessões intermináveis de rectas, com o vento que aqui e ali nos dificultava a tarefa... Só alguns guanacos, e a visão sempre curiosa de uma ou outra lenga (árvore endémica) moldada pelo vento para a eternidade, nos distraíam, até que, passados quase 100 Kms, tudo mudou: penetrámos num parque protegido (a floresta subantártica mais austral do mundo), denso bosque encantado de lengas, em que rolámos velozmente pela montanha-russa de caminhos, surpreendidos a cada curva por um guanaco entre a vegetação, ou por um dique de castores no ribeiro junto ao trilho. Finalmente, irrompendo da mata cerrada, deparou-se-nos o panorama feérico do imenso Lago Blanco, emoldurado na margem oposta pelas montanhas de cumes nevados e pelo sol do entardecer. Foi aí, no "Refugio de Caza e Pesca", que passámos a noite.

No nono dia de aventura, voltámos a percorrer o bosque, e seguimos em direcção à fronteira argentina. Tratadas as formalidades num posto fronteiriço perdido, continuámos estepe afora - mas desta vez, o vento patagónico resolveu sorrir-nos, e foi como se ganhássemos asas que atravessámos as planícies, subindo e descendo num ápice as poucas colinas, ultrapassando facilmente os 40 à hora em longas tiradas!... À nossa passagem, os bandos de íbis em revoada, e as manadas de guanacos em debandada, davam vida à imensa paisagem em tons de oiro, entrecortada , de longe em longe, por rios a perder de vista. Foi assim que chegámos a Rio Grande ainda antes da hora prevista...!


No décimo dia, condensámos duas etapas, para compensar o dia 'perdido' em Punta Arenas. Foi uma jornada de paisagem mais variada, ainda com características de estepe mas com alguns bosques aqui e ali, e ao longe cenário de montanhas. Desta feita, o vento resolveu apanhar-nos na diagonal, ligeiramente de frente, dificultando-nos a vida nos primeiros 60 Kms, até chegarmos ao lindíssimo Lago Yehuin, onde gozámos uma merecida pausa em cenário idílico, com montanhas ao fundo. Ao partir, mudámos de direcção, passando finalmente a ter o vento de costas para a metade final da etapa, o que nos permitiu mais uns velozes 'picanços'. Para terminar o dia em beleza, permitindo-nos um repouso adequado antes da derradeira etapa, o Jaime trocou o acampamento previsto por um confortável bungalow aquecido e bem equipado em Tolhuin.


A etapa final: seria em asfalto (a única alternativa) até Ushuaia, a cidade mais austral do
Mundo. Fora o simbolismo, o trajecto não parecia apresentar dificuldade de maior, para além dos cerca de 100 Kms de extensão e da portela a transpor aos 400 metros de desnível, numa subida gradual. No entanto, os deuses do vento patagónico tinham estado a preparar a sua desforra para este dia, e mal pisámos a estrada começámos a sentir o nosso inimigo do dia, açoitando-nos vigorosamente de frente e obrigando-nos a despender mais do dobro das forças que normalmente empregaríamos. Foi uma luta constante, e ao chegar ao 'Paso Garibaldi', em que cruzávamos a cadeia montanhosa, as rajadas de vento quase nos derrubavam das montadas - não nos permitindo sequer apreciar condignamente a paisagem épica sobre o lago lá em baixo.
Só a descida que se seguiu nos poupou um pouco as pernas, mas no restante percurso a batalha continuou, ao ponto de até nas descidas nos vermos obrigados a pedalar para ganhar alguma velocidade. Para piorar a situação, a temperatura do vento que nos fustigava descia nitidamente à medida que avançávamos, não nos deixando esquecer que era da Antártida que soprava!... Foi, pois, esgotados, mas com a sensação de ter conquistado cada pedalada, que atingimos a lendária Ushuaia, entrando junto ao movimentado porto, com vários navios de cruzeiro e muitos barcos de recreio, para além das embarcações comerciais, a pontilhar as agitadas águas do canal Beagle. Apesar do muito trânsito e urbanização algo desordenada, Ushuaia não deixa de ter a sua piada, aconchegada entre as montanhas e o canal, e a fervilhar de turistas que querem poder afirmar "Eu estive lá!" - uns de avião, outros de barco, à boleia ou até, imagine-se, de bicicleta (e estamos longe de ser os únicos)!...


Finda esta expedição, muito fica por contar - como a noite de consoada passada num monte patagónico, escuro como breu, a trocar o pneu furado da carrinha do Jaime, depois de fazermos mais de 100 Kms só para telefonar à família (ainda conseguimos chegar em cima da meia-noite para jantar o caldo de cordeiro preparado pela velha senhora que nos alojou na aldeia); ou as duas alemãs que corriam o Mundo em bicicleta há nove meses, mas que pediam boleia desesperadas no meio de nenhures, na estepe argentina, pois o vento era tal que nem conseguiam montar-se (claro que as levámos na carrinha)... -, mas o principal é aquilo que não conseguimos descrever, apenas apreciar: a sensação de missão cumprida!...


Como não podia deixar de ser, aqui ficam os agradecimentos: às nossas compreensivas famílias e companheiras; à competente organização da www.a2z-adventures.com; e ao nosso guerreiro mapuche, o Jaime!

Pelos Patagões,

Daniel Jesus

3 Comments:

  • Queria dar os meus parabéns ao Daniel, Luis, Raimundo e Nicolau que cumpriram o sonho e a experiência inesquecível que nenhuma foto pode transmitir. Se o relato do Daniel vos deixa água na boca, há um novo grupo em formação para ir à Patagónia "provar o Calafate"...

    By Anonymous Anónimo, at 10:11 da tarde  

  • meus caros devo dizer que é preciso "pedalada" para essas andanças mas como de "génio e de Louco" todos nós temos um pouco cá ficam desde já os meus mais sinceros votos para que contiuem a ter saude para gozar estes passeios.
    pois deve ser a maneira mais interessante para se conhecer o mundo.
    com os melhores cumprimentos

    Pedro Simões

    By Anonymous Anónimo, at 2:05 da manhã  

  • Depois de um texto destes fica sempre bem deitar abaixo! O Nicolau parece um urso... estratégia contra o frio? Fosse eu na dita aventura regurgitaria um palavrão a cada pedalada... qual apreciar os fiordes! O que são fiordes? Ao fim do dia nem saberia se o selim é amistoso. Imaginem o frio a bater nas orelhas, a meta do dia que nunca mais chega e o pensamento constante no conforto do lar. Ainda bem que não me convidaram! Combinem umas pedaladas/mergulho nos Açores e uma temporada em Cuba (antes que o Fidelito parta) que lá estarei. Quais pedais? Desde que me roubaram a minha Joana (a minha bicla) que vivo infeliz... e os preços que não baixam!

    By Anonymous Anónimo, at 12:44 da tarde  

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